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Arquivo mensal: outubro 2025
Que chatice essa história de homem entrar no vagão de mulheres!

Hoje peguei o metrô para voltar pra casa, depois de 2 horas esperando para ser atendida na farmácia de alto custo, normal. Muita gente precisando de remédio.
Eu entrei no vagão para mulheres, tenho direito a lugar por lei, estava meio cheio, então fiquei na minha, em pé.
No meio do trajeto, para minha surpresa, entra um homem, um pouco mais velho que eu. Ainda olhei bem para ver se ele tinha alguma deficiência, se usava algum tipo de colar, não, ele entrou ali porque ele quis.
Perguntei o que ele estava fazendo ali, mostrei a legislação, escrita em letras garrafais na frente dele, sobre o uso exclusivo do primeiro vagão para as mulheres, que não permitia ele estar ali. Se fez de louco, disse que em nenhum lugar é assim, eu falei para ele aqui é (Brasília), e há muitos anos. Ele não saiu…
Ainda teve uma criatura que levantou para ceder o lugar para ele. Aí uma outra mulher ficou indignada e foi abordá-lo também. Detalhe eu passei a viagem inteira em pé, na frente da cedente. Eu as minhas mais de seis décadas e os meus cabelos brancos. Sobre essa prosa de mulher desvalorizar a outra e passar pano para homem, fica para depois.
Quando eu desci fui no maquinista e falei: tem um homem aí dentro do vagão das mulheres, ele falou que ia chamar o segurança.
Segui para minha casa, parei no caminho e tomei um chai latte.
Honrar um amor

Pelos que não puderam ser
Choro!
Sonhos almejados,
Enterrados.
Não houve vida,
Existiu um parto
E uma partida. Despedida.
Lágrimas escorreram,
Muitas…
Daquilo que poderia ser
E não foi
Ausência doída.
Havia uma roupa amarela
Guardada para o próximo.
Talvez …
Do tudo ao nada.
Por fim só.
O muito sonhado,
Anos a fio…
Vive no coração guardado.
Poesia de AdrianaFetter
Reverberou

O passado reverbera em mim, com uma voz constante e potente, no silêncio do meu ser.
Ressoa em mim
os ecos de um lugar
onde fui feliz
e não sabia…
A imagem que me vem: sino tocando no vazio, com vibrações se espalhando em círculos concêntricos…
Ou talvez o rufar de um tambor, em uma caverna escura, meu eu se apropria do ressoar.
Reverbera
nos ossos,
no ritmo do sangue,
no modo como fecho a janela
ao entardecer.
Irradia em frequências mais baixas, até se tornar um zumbido de fundo, que acompanha todos os outros sons da vida.
E eu já não tento calá-lo.
Aprendi a escutá-lo
como se ouve o mar
dentro de uma concha:
com respeito,
com medo,
com a certeza
de que essa voz
— embora antiga —
ainda tem
o poder de marear.
A Última Verdade

Na sala de espera da clínica oftalmológica, o ar condicionado soprava um frio artificial sobre um silêncio pontuado por reviras de páginas de revista e olhares perdidos no celular. De repente, como um pássaro colorido pousado num fio de energia, uma voz rompeu a monotonia:
— “Olha só que homão! Que músculos! Um bonitão daqueles!”
Era uma senhorinha de cabelos brancos como neve de montanha, sentada numa cadeira de rodas, o corpo frágil vestido de roupa hospitalar. Na cabeça, uma touquinha branca de sala de cirurgia; abaixo do olho esquerdo, um adesivo vermelho como um botão de alerta. Provavelmente aguardando ou retornando de uma cirurgia de catarata.
Seu riso — um riso frouxo, solto, descompromissado com as convenções — ecoava pelo ambiente. Os olhos azul-claros, talvez embaçados pela idade ou pela doença, brilhavam com uma luz própria.
— “Parece galã de novela! Eita, deixa eu pegar um pedacinho!”
Ao seu lado, um homem de meia-idade — o filho — mantinha a cabeça baixa, as mãos entrelaçadas com nos joelhos. Seu constrangimento era quase palpável, um calor que contrastava com o ar refrigerado.
Ela não falava apenas — declamava. Seu olhar percorria a sala, conectando-se com cada pessoa como se fosse uma convidada especial em sua festa particular. E as pessoas correspondiam com sorrisos tímidos, alguns abafados, outros abertos e compreensivos. Uma senhora mais idosa assentiu com cumplicidade, como se dissesse: “Eu entendo, amiga. Eu entendo.”
Havia nela uma verdade desarmada que só a idade extrema ou a demência incipiente permitem. As amarras sociais que nos constrangem, que nos ensinam a baixar a voz e conter os desejos, haviam se soltado como fios desatados.
E enquanto observava aquela cena, veio a reflexão:
O tempo é um ladrão seletivo. Rouba memórias recentes, apaga nomes, embaralha datas. Mas talvez devolva, em troca, uma essência — aquela criança interior que nunca se preocupou com o que os outros pensariam.
O filho, em seu constrangimento amoroso, talvez não percebesse ainda que estava testemunhando a versão mais pura de sua mãe: não a senhora que o criou com regras e censuras, mas a menina que um dia foi, antes de aprender que não se deve apontar e admirar um “homão” em voz alta numa sala de espera.
A demência chegara como um crepúsculo dourado, onde contornos se suavizam e cores se intensificam. Restava a alegria crua, o riso fácil, a capacidade de encontrar beleza num corpo musculoso e de dividir essa descoberta com o mundo — mesmo que esse mundo fosse apenas uma sala de espera de hospital.
Quando a enfermeira veio buscá-la, chamando-a pelo nome com doçura profissional, a velhinha ainda lançou um último olhar cúmplice para as outras pessoas na sala, como se partilhasse um segredo delicioso.
E naquele instante, todos — inclusive o filho, que finalmente ergueu a cabeça e soltou um sorriso resignado — entenderam que, às vezes, a demência não é apenas perda.
É a última verdade que resta quando todas as mentiras sociais se vão.