
Texto baseado na crônica de Juremir Machado da Silva, que muito me emocionou e que reproduzo abaixo.
Sou uma cronista de blogue. Assim me descrevo.
Meus textos são sobre as nostalgias que me assolam como a ele, Juremir.
Penso que muito dos problemas que temos são decorrentes da falta da pausa que não se faz mais para ler e inebriar a alma.
Percebo claramente o desinteresse na leitura como uma alternativa de lazer. Não lemos, não abrimos os nossos horizontes, não viajamos no passado e no futuro. Não proporcionamos ao nosso cérebro a possibilidade de construir raciocínios diversos e colaborativos, temos informação em demasia e falta de conhecimento de estrutura. Lidamos apenas com conjunturas, sem possibilidade de construir viabilidades, estamos ficando surdos, esquecendo de ouvir os argumentos dos outro. Não dialogamos mais num debate de ideias, agredimos com palavras.
Estou triste, não sei por quanto tempo os meus escritos serão lidos, as pessoas se interessam pelo fútil, rápido e provavelmente inútil. O vloger faz muito mais sucesso que o blogue, o que se dirá então dos livros?!
Quanto menos leitura menos exercício cerebral e menor o potencial da nossa sociedade crescer científicamente e humanamente.
Precisamos incentivar as nossas crianças a leitura desde pequenos e possibilitar o desenvolvimento delas, não apenas numa sociedade da informação, mas também numa sociedade do conhecimento.
Racionalmente isso seria muito importante mas quem hoje lê os poetas?! Certamente o nosso mundo precisa muito de poesia.
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UM VIVA AOS CRONISTAS
Crônica: imaginários olfativos
Perfume da manhã
Por Juremir Machado da Silva
Que nossa mente tem seus mistérios ninguém duvida. Creio que nem mesmo os cientistas. Ou principalmente eles. Talvez a maior diferença entre um cientista e um cronista, caso se pense nisso, esteja na busca do esclarecimento. O cientista quer explicar. O cronista precisa que uma sombra permaneça. O que seria de nós, humanos, sem essa zona misteriosa que agora chamamos de imaginário? Há coisas que não explicamos e que por isso mesmo se tornam tão importantes. Tenho cada vez mais convicção de que a idade adulta se caracteriza pela “desmagificação” da existência. Quando eu era criança, tudo era mágico. Por exemplo, a cor das frutas. Eu poderia ficar horas contemplando a luminosidade de um maracujá sobre o verde do mato.
Já falei disso. Não falei? Claro que falei. Tenho a impressão de que todo cronista é um maníaco, um ser com obsessões olfativas, visuais e táteis. Um tarado da sensibilidade pretérita. Cronistas não são confiáveis. Vivem em mundos subjetivos acossados por lembranças e por fantasias que não se contentam em ser discretas. Querem aparecer, expressar-se, brilhar. Cronistas não são úteis. Jamais soube de um cronista que tenha contribuído para a evolução do PIB ou para a erradicação da miséria. Cronistas e poetas não ouvem a razão. Divagam, caem em devaneios, evadem-se, poluem a realidade com suas conjecturas, semeiam tempestades, evocações, paixões, enigmas e frases ambíguas.
Se eu fosse ditador mandava prender todos os cronistas, especialmente os que fazem prosa poética. Para que servem? Desvirtuam as mentes, distraem os trabalhadores, atrapalham a marcha para a objetividade, promovem teses estranhas, generalizam, contestam especialistas, manipulam as palavras explorando uma multiplicidade de sentidos que confundem as mentes lineares. Aposto que se alguém procurar bem, com método, encontrará outra crônica minha com o título “perfume da manhã”. Creio que eu daria um bom ditador: tirano, cruel, inimigos dos cronistas e dos poetas, contraditório, impiedoso, nu. Como todo ditador, meu lema é: façam o que eu mando, não como eu.
Entre todas as memórias afetivas que carrego comigo, como quem passeia por ruas conhecidas de onde todos se foram sem dar notícias, mas onde suas imagens permanecem como numa história do argentino Bioy Casares, a que mais impregna minha alma é a do cheiro das manhãs. Sim, eu acredito que temos uma alma. Não sei se ela é imortal. Torço que sim. Creio que meu lado místico já não se contenta em calar. Fica fazendo discursos do fundo de mim. Provocações sinuosas. O cheiro das manhãs me faz sonhar de um jeito especial. Uma vez, falei disso para um químico. Ele sorriu. Outra vez, comentei isso com um sociólogo. Ele balançou a cabeça como quem diz “que coisa!” O cheiro das manhãs me acompanha desde a mais tenra infância. É um cheiro de frescor e de esperança. Eu deveria falar de cheiro, perfume ou aroma? Não sei.
Outro dia, saí de casa às 7h30. É meu horário habitual. Normalmente me comporto como um homem normal. Não farejo o ar. Caminho em linha reta, passos médios, objetivos claros, metas a alcançar, foco no trabalho, valores a defender, pensamentos respeitáveis, teses a sustentar. Nesse dia que quero contar, porém, foi diferente. Quando botei o pé na rua, na minha rua, que ainda não mandei ladrilhar para a Cláudia passar por falta de recursos e para não ver mais uma obra inacabada na cidade, soprava uma brisa inebriante. Sim, eu bebo brisa até cair. Senti o cheiro da manhã como antigamente. Entre os cheiros que me fascinam estão o de figos maduros e o de goiaba. Mas também um cheiro muito singular, o de água de sanga depois de um mergulho.
Farejei o ar. Minhas narinas fremiram com as de um cavalo, um potro selvagem de lustrosos pelos tostados. Uma senhora que passava se assustou e resmungou alguma coisa que não captei. Duvido que o leitor já tenha encontrado ocasião de usar o verbo fremir. Minhas narinas fremiram. O ar estava leve, perfumado, refrescante, carregado de uma pátina, sim, uma pátina, insisto, uma marca de tempo, uma suavidade tocante que me penetrou o corpo e a mente com uma seiva entorpecente. Eu sorri. Fosse pássaro, voava. Fosse mesmo cavalo, saía em disparada. Fosse menino, dava uma cambalhota. Eis o problema: nunca consegui dar cambalhota, que chamávamos de cambota. Tinha medo de quebrar o pescoço e de derramar as ideias quando estivesse de cabeça para baixo.
O perfume da manhã que me embriaga escancarando as portas da minha percepção tem cheiro de rosas, avencas, lírios, jasmins, figos, pêssegos, goiabas, sereno, vento, cantigas de roda, terra molhada, sangas, infância, poesia, grama, mato, lagoa, mágica, risadas, caderno de caligrafia, lápis de cor, fruta no pé e saudade, uma saudade doída do melhor de mim, aquilo que fui naturalmente. O cheiro de manhã que me faz viajar no tempo tem a força e a ternura das lembranças gratuitas que nunca se apagam por não terem preço nem comprador.
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Postado em 18 de novembro de 2017 por Juremir Publicado em Uncategorized
Perfume da manhã
Que nossa mente tem seus mistérios ninguém duvida. Creio que nem mesmo os cientistas. Ou principalmente eles. Talvez a maior diferença entre um cientista e um cronista, caso se pense nisso, esteja na busca do esclarecimento. O cientista quer explicar. O cronista precisa que uma sombra permaneça. O que seria de nós, humanos, sem essa zona misteriosa que agora chamamos de imaginário? Há coisas que não explicamos e que por isso mesmo se tornam tão importantes. Tenho cada vez mais convicção de que a idade adulta se caracteriza pela “desmagificação” da existência. Quando eu era criança, tudo era mágico. Por exemplo, a cor das frutas. Eu poderia ficar horas contemplando a luminosidade de um maracujá sobre o verde do mato.
Já falei disso. Não falei? Claro que falei. Tenho a impressão de que todo cronista é um maníaco, um ser com obsessões olfativas, visuais e táteis. Um tarado da sensibilidade pretérita. Cronistas não são confiáveis. Vivem em mundos subjetivos acossados por lembranças e por fantasias que não se contentam em ser discretas. Querem aparecer, expressar-se, brilhar. Cronistas não são úteis. Jamais soube de um cronista que tenha contribuído para a evolução do PIB ou para a erradicação da miséria. Cronistas e poetas não ouvem a razão. Divagam, caem em devaneios, evadem-se, poluem a realidade com suas conjecturas, semeiam tempestades, evocações, paixões, enigmas e frases ambíguas.
Se eu fosse ditador mandava prender todos os cronistas, especialmente os que fazem prosa poética. Para que servem? Desvirtuam as mentes, distraem os trabalhadores, atrapalham a marcha para a objetividade, promovem teses estranhas, generalizam, contestam especialistas, manipulam as palavras explorando uma multiplicidade de sentidos que confundem as mentes lineares. Aposto que se alguém procurar bem, com método, encontrará outra crônica minha com o título “perfume da manhã”. Creio que eu daria um bom ditador: tirano, cruel, inimigos dos cronistas e dos poetas, contraditório, impiedoso, nu. Como todo ditador, meu lema é: façam o que eu mando, não como eu.
Entre todas as memórias afetivas que carrego comigo, como quem passeia por ruas conhecidas de onde todos se foram sem dar notícias, mas onde suas imagens permanecem como numa história do argentino Bioy Casares, a que mais impregna minha alma é a do cheiro das manhãs. Sim, eu acredito que temos uma alma. Não sei se ela é imortal. Torço que sim. Creio que meu lado místico já não se contenta em calar. Fica fazendo discursos do fundo de mim. Provocações sinuosas. O cheiro das manhãs me faz sonhar de um jeito especial. Uma vez, falei disso para um químico. Ele sorriu. Outra vez, comentei isso com um sociólogo. Ele balançou a cabeça como quem diz “que coisa!” O cheiro das manhãs me acompanha desde a mais tenra infância. É um cheiro de frescor e de esperança. Eu deveria falar de cheiro, perfume ou aroma? Não sei.
Outro dia, saí de casa às 7h30. É meu horário habitual. Normalmente me comporto como um homem normal. Não farejo o ar. Caminho em linha reta, passos médios, objetivos claros, metas a alcançar, foco no trabalho, valores a defender, pensamentos respeitáveis, teses a sustentar. Nesse dia que quero contar, porém, foi diferente. Quando botei o pé na rua, na minha rua, que ainda não mandei ladrilhar para a Cláudia passar por falta de recursos e para não ver mais uma obra inacabada na cidade, soprava uma brisa inebriante. Sim, eu bebo brisa até cair. Senti o cheiro da manhã como antigamente. Entre os cheiros que me fascinam estão o de figos maduros e o de goiaba. Mas também um cheiro muito singular, o de água de sanga depois de um mergulho.
Farejei o ar. Minhas narinas fremiram com as de um cavalo, um potro selvagem de lustrosos pelos tostados. Uma senhora que passava se assustou e resmungou alguma coisa que não captei. Duvido que o leitor já tenha encontrado ocasião de usar o verbo fremir. Minhas narinas fremiram. O ar estava leve, perfumado, refrescante, carregado de uma pátina, sim, uma pátina, insisto, uma marca de tempo, uma suavidade tocante que me penetrou o corpo e a mente com uma seiva entorpecente. Eu sorri. Fosse pássaro, voava. Fosse mesmo cavalo, saía em disparada. Fosse menino, dava uma cambalhota. Eis o problema: nunca consegui dar cambalhota, que chamávamos de cambota. Tinha medo de quebrar o pescoço e de derramar as ideias quando estivesse de cabeça para baixo.
O perfume da manhã que me embriaga escancarando as portas da minha percepção tem cheiro de rosas, avencas, lírios, jasmins, figos, pêssegos, goiabas, sereno, vento, cantigas de roda, terra molhada, sangas, infância, poesia, grama, mato, lagoa, mágica, risadas, caderno de caligrafia, lápis de cor, fruta no pé e saudade, uma saudade doída do melhor de mim, aquilo que fui naturalmente. O cheiro de manhã que me faz viajar no tempo tem a força e a ternura das lembranças gratuitas que nunca se apagam por não terem preço nem comprador.