
Todas as manhãs, antes mesmo do sol raiar sobre Pirenópolis, ela moía grãos ao som do farfalhar das pétalas vermelhas ao vento. Era ali, sob aquele teto vivo, que seu dia começava.
“Café e buganvília têm a mesma alma”, dizia sua mãe. “Ambos florescem onde há raiz forte… e calor humano.”
E Graça regava ambas as raízes. Enquanto a água fervia, seus pensamentos iam para Marina, a filha distante em terras lusitanas.
Depois, para os rostos que povoaram o “Caramanchão Vermelho” por dez anos: o velho Ernesto, que lia jornal sob uma chuva de pétalas, a estudante Juliana, cujas lágrimas caíam sobre o capuccino, manchando a espuma de rosa, os namorados que se beijavam, entre galhos floridos, tanta gente…
No curso de barista, anotou:
“Temperatura ideal: 92°C.”
Mas seu coração gravou:
“Xícara quente + flor vermelha = cura para solidão.”
No Caramanchão, ela não servia café — ministrava ouvidoria.
— “Seu espresso, S. Ernesto. E a roseira do senhor, floresceu?”
— “Capuccino com canela, Juliana. Hoje a nota vem!”
As buganvílias testemunhavam segredos sussurrados, entre o tilintar de xícaras.
Até que a pandemia veio.
E o mundo parou.
Na primeira manhã de portas fechadas, Graça preparou um café só para si.
Sentou, olhou para cima: as buganvílias, ainda vermelhas, agora sem plateia.
Foi então que percebeu:
O vapor subia igual, mas o silêncio doía mais que saudade.
Eram as flores que choravam agora.
Fechou o café, mas não o ritual.
Todas as manhãs, moía grãos para a xícara azul-cobalto.
E, enquanto vaporizava o leite, fotografava a espuma branca contra o pano de fundo das buganvílias pela janela.
Enviava para Marina:
“Pensando em ti — sob véu vermelho.”
A resposta vinha rápido:
“As flores da vovó ainda resistem! Saudades do teu café, mãe.”
Foi numa dessas madrugadas, com o cheiro doce das flores noturnas invadindo a cozinha, que a palavra a atingiu:
ACOLHER.
Parou. Olhou para o caramanchão iluminado pela lua — as flores vermelhas agora pareciam braços abertos.
Lembrou:
— Da estudante Juliana, que voltara com o diploma amarrado por uma fita vermelha;
— Do velho Ernesto, enterrado com uma flor de buganvília no paletó;
— Do cheiro da infância de Marina, sempre a brincar naquela chão de pétalas e teto florido.
Todas as vezes, não fora só a dona de um café. Fora jardineira de almas.
Anos depois, Marina voltou.
Encontrou Graça no alvorecer, colhendo buganvílias com uma mão e o café na outra.
— “Precisa de ajuda, mãe?”
Graça sorriu, estendendo-lhe um ramo vermelho:
— “Só se me disseres como Lisboa cheira pela manhã.”
Sentaram-se onde antes havia mesas, agora só grama e flores.
Graça lhe serviu a xícara azul-cobalto.
Marina ergueu o celular:
‘Click.’
— “Pra quem é?” perguntou Graça.
— “Pra minha filha. Amanhã. Com a legenda: ‘Vovó Graça diz que café e buganvília têm a mesma alma’.”
Foi quando Graça entendeu:
O caramanchão físico poderia até morrer.
Mas o verdadeiro caramanchão
era ela mesma — tronco firme, flores vermelhas abertas, sempre pronta a dar sombra e beleza a quem precise de um lar passageiro.
Conto de AdrianaFetter