O primeiro tapa

O primeiro tapa aconteceu enquanto ela dirigia, numa discussão sem importância, o marido não tinha mais argumentos, virou e bateu na sua mão.

Foi um susto, chegou por segundos a perder a direção do carro, mas retomou rapidamente. Não entendeu o que tinha acontecido, ficou sem palavras até chegar em casa, o rosto permanecia vermelho, como se tivesse levado uma bofetada. Restou um zumbido agudo no ouvido direito.

O casamento já vinha desgastado com frequentes discussões, ela tentava permanecer nele. Havia sido criada sabendo que casamento era para sempre.

Sua mãe repetira até morrer: “Mulher de verdade engole seco e sorri.” Não sabia mais o que fazer, agora aquele tapa.

Sentou no banco da cozinha, observando a mão direita: o lugar onde ele batera latejava; o anel de ouro apertava como cilada.

Lembrou-se de quando ele o colocara, 12 anos atrás. “Para sempre”, ele dissera. Agora, “para sempre” cheirava a medo.

Foi então que o corpo decidiu por ela.
Levantou-se, foi ao banheiro, e vomitou.
Não foi a raiva — foi o nojo retrospectivo de todos os desrespeitos que normalizara.

Quando ele veio para o quarto, tarde da noite, já cheirando a whisky, ela estava sentada na cama, com a mala aberta.

“Onde você pensa que vai?” ele riu, a voz grossa de álcool e soberba.
Ela não ergueu os olhos. Concentrou-se na textura áspera da alça da mala.

“Você me deixou com raiva no carro”, ele justificou, como se falasse de um cachorro que puxara a coleira. “Você me empurra pro limite.”

Foi quando ela viu: não era o primeiro tapa.
Era o último soco num caixão que ela própria cavara, dia após dia, ao dizer “ele muda”.

De pé agora, frente a frente com o rosto familiar, ela disse só:
“Tira suas coisas até amanhã.”

A frase saiu calma, clara, cortante como vidro.
Ele empalideceu. Tentou o velho truque: “Sem mim, você não é nada.”

Mas ela já corria o fecho da mala.
O estalo no carro partira algo irreparável dentro dela — o nó que a prendia.

Na manhã seguinte, ela ficou sentada à janela, silenciosamente equilibrada. Suspirou…

Sua mão direita ainda doía.
Mas pela primeira vez em anos,
o anel não apertava.