Que chatice essa história de homem entrar no vagão de mulheres!

Hoje peguei o metrô para voltar pra casa, depois de 2 horas esperando para ser atendida na farmácia de alto custo, normal. Muita gente precisando de remédio.

Eu entrei no vagão para mulheres, tenho direito a lugar por lei, estava meio cheio, então fiquei na minha, em pé.

No meio do trajeto, para minha surpresa, entra um homem, um pouco mais velho que eu. Ainda olhei bem para ver se ele tinha alguma deficiência, se usava algum tipo de colar, não, ele entrou ali porque ele quis.

Perguntei o que ele estava fazendo ali, mostrei a legislação, escrita em letras garrafais na frente dele, sobre o uso exclusivo do primeiro vagão para as mulheres, que não permitia ele estar ali. Se fez de louco, disse que em nenhum lugar é assim, eu falei para ele aqui é (Brasília), e há muitos anos. Ele não saiu…

Ainda teve uma criatura que levantou para ceder o lugar para ele. Aí uma outra mulher ficou indignada e foi abordá-lo também. Detalhe eu passei a viagem inteira em pé, na frente da cedente. Eu as minhas mais de seis décadas e os meus cabelos brancos. Sobre essa prosa de mulher desvalorizar a outra e passar pano para homem, fica para depois.

Quando eu desci fui no maquinista e falei: tem um homem aí dentro do vagão das mulheres, ele falou que ia chamar o segurança.

Segui para minha casa, parei no caminho e tomei um chai latte.

O metrô e a vida

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Todos os dias no metrô ela dormia às vezes sentada, quando dava, outras em pé mesmo, encostada aproveitava os infinitos minutos, até chegar ao destino.

Essa era a rotina, levantar, arrumar rapidamente o café, lavar a louça e sair correndo para pegar o ônibus, para conseguir entrar no metrô as 6h.

A vizinha levaria as crianças para a escola, deixava a mesa posta com o café e elas de uniforme, as vestia mesmo dormindo, para não dar trabalho para a amiga.

O marido?! Já tinha se ido, achado outro caminho, sequer tinha notícias dele.

O sustento da casa era por conta dela, mas comida na mesa tinha. Podia ser pão dormido com café, arroz e feijão com ovo, mas tinha. Morar no subúrbio era o que dava, no momento.

Sempre dizia às filhas: estudem, nunca dependam de ninguém, a vida só é vivida assim, façam seu próprio caminho.

Nem ela sabia como tinha chegado ali, tanta luta todos os dias. Tanta caminhada para ganhar a comida e o aluguel, mas pelas filhas e o seu futuro valia cada passo.

Estudou até finalizar o segundo grau e casou.

As meninas teriam muito mais do que ela teve, essa era a meta. Para elas muito mais que ser manicure, indo até as clientes, para completar as necessidades da família. Ela lutava e não recuava em nada.

Sua salvação sempre foi o que sabia fazer. Fez um curso profissionalizante, curto, mas dava para o sustento. Também escovava o cabelo das clientes mais próximas e sabia maquiar, quando pediam.

No metrô dormia, benditos minutos para o corpo e para a cabeça, a sua porção de tranquilidade.

conto de Adrianafetter

Ruínas de Preconceito

Rute pegava o metrô todos os dias. Ia cedo para o trabalho, nem sempre conseguia entrar no vagão exclusivo para as mulheres. Às vezes cheio demais, outras vezes ele já estava parado lá embaixo, na descida das escadas. Tinha que correr e entrar na primeira porta do vagão.

Via muitas colegas reclamarem do assédio nos transportes. Nunca tinha visto nada. Então, na sua cabeça, já tinha um pensamento pronto: “Deve ser a roupa ou os modos delas. Por isso venho sempre vestida como mulher de respeito, ninguém me incomoda.” Nem dava ouvidos. Afinal, a culpa era delas que não se davam ao respeito. Ela tinha sido muito bem educada. Na igreja, todos elogiavam sua seriedade.

Ouvia, vez em quando, maledicências na sua paróquia. Algumas famílias tinham se mudado, falaram que o padre não era sério. Como assim?! Até nome de santo ele tinha! Padre Antônio, era caridoso, ensaiava o coral de meninos, que tratava com muito carinho. Do pastor da igreja da Dona Cida também tinha comentários, de desvio de dinheiro e envolvimento com mulheres do Bairro. Para Rute era muita maldade dessa gente, ficar falando desses homens escolhidos para pregar a palavra de Deus.

Na segunda-feira, se atrasou. Cinco minutos, mas o metrô não espera. Correu, passou seu cartão na catraca, desceu a escada rolante pedindo licença, se lamentando: “Como fui deixar isso acontecer?! O chefe não gosta de atraso… Tá certo que ele chega bem depois, mas liga só para saber se já cheguei, diz que é para dar bom dia, é uma gentileza… e eu atrasada.”

Nem sabe como conseguiu entrar no vagão. Lotado. As portas fecharam com um estalo seco. Na sua frente, um senhor muito distinto, barbeado, impecável no terno, sorriu: “Bom dia!”. Ele também tinha vencido o atraso, parecia feliz. Ao lado, um rapaz de rabo de cavalo, roupas largas e coloridas – exótico, logo pensou. Como essas pessoas conseguem se vestir assim?! Mas o rapaz respondeu ao seu bom dia, educadamente. “Ao menos sabe dar um bom dia.”

O senhor distinto impressionava. Ele se aproximou como se fosse descer na próxima estação. Encostou nela. “Nossa, está muito cheio hoje”, pensou, tentando se acomodar. O senhor não desceu. Continuou encostado, pressionando-a contra a parede fria do vagão. Rute ficou dura. Uma paralisia estranha tomou seu corpo. Não conseguia olhar para os lados, constrangida. Sentiu o calor dele, o tecido grosso do terno contra seu braço. De repente, percebeu um movimento ao seu lado. “Deve estar pegando a carteira”, tentou racionalizar, enquanto uma pontada de desconforto subia pela espinha.

Os movimentos foram ficando ritmados, intensos. Um vai-e-vem estranho, insistente. Rute congelou. O ar faltou. Antes que pudesse reagir, o jovem esquisito se colocou entre os dois, empurrando o homem com força. “Não tem vergonha, não?! Se veste assim pra quê? Pra se esconder enquanto desrespeita uma mulher?!”

Aí ela teve coragem de olhar para baixo. Seu sapato social preto estava encharcado. Uma substância esbranquiçada, gosmenta, escorria pela fivela e manchava a meia-calça. Um cheiro ácido, adocicado, invadiu suas narinas. As lágrimas afloraram, quentes e silenciosas, escorrendo pelo rosto enquanto tremia feito vara verde.

O rapaz voltou-se para ela, a voz mais suave: “Moça, não fique assim. Eu vou te ajudar.” Chamou o guarda do metrô enquanto segurava firme a gola do terno do sujeito, que tentava se esquivar, o rosto antes distinto agora contraído em um ricto de raiva e medo.

O caminho até a delegacia foi um borrão. Rute caminhava como um autômato, guiada pelo rapaz – Tiago, soube depois –, sentindo o peso dos olhares curiosos, o sapato grudando no chão. A vergonha queimava seu rosto. O que está acontecendo? O mundo, sólido e previsível minutos antes, desmoronava. Tinha uma repórter lá, microfone em punho. “Senhora, pode nos contar o que aconteceu?” Rute abriu a boca, mas só saíram sons roucos, sílabas truncadas. Balançou a cabeça, as lágrimas renovadas.

Tiago interveio, calmo mas firme: “Essa moça entrou no metrô, estava lotado. Aquele cidadão, todo engravatado, se masturbou ao lado dela. Sujou os pés e os sapatos dela. É um sem-vergonha, sem caráter. Ela está em choque. Eu vim junto pra dar suporte.”

Rute não entendia mais nada. O senhor distinto era um depravado. O moço esquisito era uma boa alma. A cabeça girava, o chão parecia ceder. Pediu para chamar o marido. Dentro dela, uma culpa aguda latejava: O que eu fiz de errado?

José chegou como um furacão, a cara uma tempestade. Antes mesmo de olhar para ela, cuspiu as palavras: “O que foi que você fez, Rute? Não se dá ao respeito?!” Avançou para cima de Tiago, os punhos cerrados, pronto para acusar o alvo mais óbvio.

Rute encontrou uma voz que não conhecia, rouca mas cortante: “Pára, José! O moço me ajudou tempo todo!”

José estacou, confuso. “Então quem foi o desgraçado, Rute?!”

“Foi esse homem de terno”, ela murmurou, os ombros curvados sob o peso da vergonha e da desilusão.

“O de terno?!” José replicou, incrédulo, apontando para o agressor já algemado. “Não é possível! Ele é um senhor distinto! Quando chegarmos em casa vamos conversar, dona Rute!”

Tiago tentou novamente: “Senhor, ela não tem culpa nenhuma. A única coisa que ela fez foi entrar no vagão do metrô.”

José revirou os olhos, alterado: “Sai daqui, você! Não entende nada. Todo estranho, com esse rabo de cavalo… Deve ser mais um depravado da vida!”

Rute chorou então não só de medo ou vergonha do ocorrido, mas do marido. Dos anos vividos ao lado desse homem que, naquele instante, era um completo estranho. Ele sempre disse que tirou a sorte grande com uma mulher de respeito… As palavras de Tiago, como um fio de lucidez, ecoaram: “Ela não tem culpa nenhuma.”

Tiago, antes de ser empurrado para longe por José, conseguiu deslizar um papel na mão gelada de Rute: “Dona Rute, meu telefone. Se precisar do meu depoimento, estou às suas ordens.”

“Vaza, moleque!”, José rugiu. Virou-se para Rute, o desprezo escorrendo: “Nunca pensei que você fosse me humilhar desse jeito. Que vergonha, meu Deus.”

Em casa, o silêncio era um terceiro personagem, pesado e hostil. Rute só queria apagar aquele dia. Ainda tinha que enfrentar o chefe. Ligou, a voz trêmula: “Dr. Eduardo, aconteceu algo grave… Lhe explico amanhã.” Desligou antes que perguntassem mais.

José explodiu novamente na sala. Rute virou para ele. Os olhos vermelhos, mas secos agora, encontraram os dele. Uma chama fria acendeu dentro dela. “Para de gritar. Eu sou a mesma Rute. Não fiz nada demais. Não sei por que aquele homem fez isso. O Tiago foi um anjo que Deus mandou na hora.”

“Anjo?!”, José bufou. “É um fedelho qualquer, se aproveitando pra aparecer!”

Pela primeira vez, Rute viu José com clareza. E viu a si mesma refletida naquele olhar cheio de preconceito e desconfiança.

Fechou-se no banheiro. A água quente do chuveiro não lavava a sensação de sujeira, nem o cheiro fantasmal que insistia em suas narinas. Vestiu um roupão, fez um chá. Sentou-se à mesa da cozinha, a escuridão lá fora espelhando a que sentia dentro. As histórias das colegas voltaram, nítidas, dolorosas. A da Maria… Lembrou do dia em que Maria chegara ao trabalho com os olhos inchados e um rasgão na blusa. Contara, entre soluços, como um homem tentara arrastá-la para uma rua escura. Conseguira fugir. Desde então, o marido a chamava de “vadia”. O casamento desmoronou. Maria saíra de casa, enfrentando a reprovação dos pais – “Casamento é pra vida inteira!” – e encontrara apoio num grupo de mulheres. Falava de sororidade, de feminismo.

Rute achara tudo bobagem. “Coisa de mulher sem o que fazer”, pensara. Mas via a mudança em Maria, uma força que brotava dela. Rute sempre se calara, ficara na sua.

José não quis deitar na mesma cama. “Durmo no sofá”, anunciou, a voz carregada de acusação. “Coisas assim não acontecem com mulher séria”, resmungou, indo embora. A sentença pairou no ar.

Rute acordou antes do sol. Uma coragem nova, desconhecida, pulsava em suas veias. Encontrou José na cozinha, evitando seu olhar. Parou diante dele.

“José”, disse, a voz clara e estável, surpreendendo-a. “Eu sei quem eu sou. Sei o que faço e o que não faço. Você casou com a mesma mulher que está aqui na sua frente. A mulher que não fez nada para aquele homem, a não ser dar bom dia ao entrar no vagão. Não estou mais te reconhecendo, José. Você não é o homem com quem me casei, que fez os votos na igreja comigo. Acho que você não os entendeu. Então vou repetir: *Prometo amar-te e respeitar-te na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, na riqueza e na pobreza, por todos os dias da minha vida, até que a morte nos separe.* Respeito, José. Eu vou trabalhar. Enquanto isso, você decide onde vai dormir hoje à noite.”

A surpresa estampou no rosto de José. Ele engoliu seco, desviou, mais uma vez, os olhos, batendo as mãos inquietas sobre a mesa. Rute virou-se e saiu. Quem era aquela mulher? Gostou de não saber, ainda. Gostou mais ainda do silêncio atônito que deixou para trás.

O caso estava no jornal da TV. Ao chegar no trabalho, o ar mudara. Maria veio correndo, envolveu-a num abraço forte, quente. “Estou contigo, Rute. Pode contar comigo.” Outras colegas se aproximaram, abraçaram-na, murmuraram palavras de apoio. Algumas ficaram distantes, nos cantos, como ela mesma ficara tantas vezes. “Devem estar pensando que mereci”, passou-lhe pela cabeça, mas a dor era menor agora.

Na sua mesa, uma única rosa num copo de água. Um bilhete do chefe: “Bom dia, Rute. Já sabemos. Se quiser conversar, minha porta está aberta. Mas não precisa se explicar. Fique bem.”

O abatimento ainda a tocava, mas agora era contrabalançado por uma onda de alívio. Encontrara no trabalho o apoio que José lhe negara. O abraço que precisava, o afago para a alma machucada.

Na hora do almoço, procurou Maria. “Maria…”, começou, a voz um pouco hesitante, mas os olhos firmes. “Quando tiver a próxima reunião do seu grupo… Eu gostaria de ir. Se puder. E… por enquanto, você pode me explicar o que é esse feminismo que você tanto fala?”

Maria sorriu. Um sorriso triste, compreensivo, cheio de uma luz nova. Apertou a mão de Rute. “Claro que sim, amiga. Claro que sim.”

Dentro de Rute, algo novo nascia, frágil e forte ao mesmo tempo. Não sabia ainda quem era essa mulher que emergia das cinzas. Reconhecia-se cheia de preconceitos que agora lhe pareciam grotescos. O rapaz que julgara pelo visual fora seu anjo da guarda. A colega que desdenhara era seu porto seguro. O chefe que temera era um aliado. E o marido que idolatrara… José ainda era uma interrogação dolorosa.

Seus preceitos mais arraigados ruíam. Junto com eles, caíam os muros altos dos seus preconceitos. Rute começava a desvendar um mundo e uma vida até então desconhecidos. O trabalho seria longo: varrer as velhas ruínas e, tijolo a tijolo, palavra a palavra, reconstruir-se.

Conto de Adrianafetter