Ruínas de Preconceito

Rute pegava o metrô todos os dias. Ia cedo para o trabalho, nem sempre conseguia entrar no vagão exclusivo para as mulheres. Às vezes cheio demais, outras vezes ele já estava parado lá embaixo, na descida das escadas. Tinha que correr e entrar na primeira porta do vagão.

Via muitas colegas reclamarem do assédio nos transportes. Nunca tinha visto nada. Então, na sua cabeça, já tinha um pensamento pronto: “Deve ser a roupa ou os modos delas. Por isso venho sempre vestida como mulher de respeito, ninguém me incomoda.” Nem dava ouvidos. Afinal, a culpa era delas que não se davam ao respeito. Ela tinha sido muito bem educada. Na igreja, todos elogiavam sua seriedade.

Ouvia, vez em quando, maledicências na sua paróquia. Algumas famílias tinham se mudado, falaram que o padre não era sério. Como assim?! Até nome de santo ele tinha! Padre Antônio, era caridoso, ensaiava o coral de meninos, que tratava com muito carinho. Do pastor da igreja da Dona Cida também tinha comentários, de desvio de dinheiro e envolvimento com mulheres do Bairro. Para Rute era muita maldade dessa gente, ficar falando desses homens escolhidos para pregar a palavra de Deus.

Na segunda-feira, se atrasou. Cinco minutos, mas o metrô não espera. Correu, passou seu cartão na catraca, desceu a escada rolante pedindo licença, se lamentando: “Como fui deixar isso acontecer?! O chefe não gosta de atraso… Tá certo que ele chega bem depois, mas liga só para saber se já cheguei, diz que é para dar bom dia, é uma gentileza… e eu atrasada.”

Nem sabe como conseguiu entrar no vagão. Lotado. As portas fecharam com um estalo seco. Na sua frente, um senhor muito distinto, barbeado, impecável no terno, sorriu: “Bom dia!”. Ele também tinha vencido o atraso, parecia feliz. Ao lado, um rapaz de rabo de cavalo, roupas largas e coloridas – exótico, logo pensou. Como essas pessoas conseguem se vestir assim?! Mas o rapaz respondeu ao seu bom dia, educadamente. “Ao menos sabe dar um bom dia.”

O senhor distinto impressionava. Ele se aproximou como se fosse descer na próxima estação. Encostou nela. “Nossa, está muito cheio hoje”, pensou, tentando se acomodar. O senhor não desceu. Continuou encostado, pressionando-a contra a parede fria do vagão. Rute ficou dura. Uma paralisia estranha tomou seu corpo. Não conseguia olhar para os lados, constrangida. Sentiu o calor dele, o tecido grosso do terno contra seu braço. De repente, percebeu um movimento ao seu lado. “Deve estar pegando a carteira”, tentou racionalizar, enquanto uma pontada de desconforto subia pela espinha.

Os movimentos foram ficando ritmados, intensos. Um vai-e-vem estranho, insistente. Rute congelou. O ar faltou. Antes que pudesse reagir, o jovem esquisito se colocou entre os dois, empurrando o homem com força. “Não tem vergonha, não?! Se veste assim pra quê? Pra se esconder enquanto desrespeita uma mulher?!”

Aí ela teve coragem de olhar para baixo. Seu sapato social preto estava encharcado. Uma substância esbranquiçada, gosmenta, escorria pela fivela e manchava a meia-calça. Um cheiro ácido, adocicado, invadiu suas narinas. As lágrimas afloraram, quentes e silenciosas, escorrendo pelo rosto enquanto tremia feito vara verde.

O rapaz voltou-se para ela, a voz mais suave: “Moça, não fique assim. Eu vou te ajudar.” Chamou o guarda do metrô enquanto segurava firme a gola do terno do sujeito, que tentava se esquivar, o rosto antes distinto agora contraído em um ricto de raiva e medo.

O caminho até a delegacia foi um borrão. Rute caminhava como um autômato, guiada pelo rapaz – Tiago, soube depois –, sentindo o peso dos olhares curiosos, o sapato grudando no chão. A vergonha queimava seu rosto. O que está acontecendo? O mundo, sólido e previsível minutos antes, desmoronava. Tinha uma repórter lá, microfone em punho. “Senhora, pode nos contar o que aconteceu?” Rute abriu a boca, mas só saíram sons roucos, sílabas truncadas. Balançou a cabeça, as lágrimas renovadas.

Tiago interveio, calmo mas firme: “Essa moça entrou no metrô, estava lotado. Aquele cidadão, todo engravatado, se masturbou ao lado dela. Sujou os pés e os sapatos dela. É um sem-vergonha, sem caráter. Ela está em choque. Eu vim junto pra dar suporte.”

Rute não entendia mais nada. O senhor distinto era um depravado. O moço esquisito era uma boa alma. A cabeça girava, o chão parecia ceder. Pediu para chamar o marido. Dentro dela, uma culpa aguda latejava: O que eu fiz de errado?

José chegou como um furacão, a cara uma tempestade. Antes mesmo de olhar para ela, cuspiu as palavras: “O que foi que você fez, Rute? Não se dá ao respeito?!” Avançou para cima de Tiago, os punhos cerrados, pronto para acusar o alvo mais óbvio.

Rute encontrou uma voz que não conhecia, rouca mas cortante: “Pára, José! O moço me ajudou tempo todo!”

José estacou, confuso. “Então quem foi o desgraçado, Rute?!”

“Foi esse homem de terno”, ela murmurou, os ombros curvados sob o peso da vergonha e da desilusão.

“O de terno?!” José replicou, incrédulo, apontando para o agressor já algemado. “Não é possível! Ele é um senhor distinto! Quando chegarmos em casa vamos conversar, dona Rute!”

Tiago tentou novamente: “Senhor, ela não tem culpa nenhuma. A única coisa que ela fez foi entrar no vagão do metrô.”

José revirou os olhos, alterado: “Sai daqui, você! Não entende nada. Todo estranho, com esse rabo de cavalo… Deve ser mais um depravado da vida!”

Rute chorou então não só de medo ou vergonha do ocorrido, mas do marido. Dos anos vividos ao lado desse homem que, naquele instante, era um completo estranho. Ele sempre disse que tirou a sorte grande com uma mulher de respeito… As palavras de Tiago, como um fio de lucidez, ecoaram: “Ela não tem culpa nenhuma.”

Tiago, antes de ser empurrado para longe por José, conseguiu deslizar um papel na mão gelada de Rute: “Dona Rute, meu telefone. Se precisar do meu depoimento, estou às suas ordens.”

“Vaza, moleque!”, José rugiu. Virou-se para Rute, o desprezo escorrendo: “Nunca pensei que você fosse me humilhar desse jeito. Que vergonha, meu Deus.”

Em casa, o silêncio era um terceiro personagem, pesado e hostil. Rute só queria apagar aquele dia. Ainda tinha que enfrentar o chefe. Ligou, a voz trêmula: “Dr. Eduardo, aconteceu algo grave… Lhe explico amanhã.” Desligou antes que perguntassem mais.

José explodiu novamente na sala. Rute virou para ele. Os olhos vermelhos, mas secos agora, encontraram os dele. Uma chama fria acendeu dentro dela. “Para de gritar. Eu sou a mesma Rute. Não fiz nada demais. Não sei por que aquele homem fez isso. O Tiago foi um anjo que Deus mandou na hora.”

“Anjo?!”, José bufou. “É um fedelho qualquer, se aproveitando pra aparecer!”

Pela primeira vez, Rute viu José com clareza. E viu a si mesma refletida naquele olhar cheio de preconceito e desconfiança.

Fechou-se no banheiro. A água quente do chuveiro não lavava a sensação de sujeira, nem o cheiro fantasmal que insistia em suas narinas. Vestiu um roupão, fez um chá. Sentou-se à mesa da cozinha, a escuridão lá fora espelhando a que sentia dentro. As histórias das colegas voltaram, nítidas, dolorosas. A da Maria… Lembrou do dia em que Maria chegara ao trabalho com os olhos inchados e um rasgão na blusa. Contara, entre soluços, como um homem tentara arrastá-la para uma rua escura. Conseguira fugir. Desde então, o marido a chamava de “vadia”. O casamento desmoronou. Maria saíra de casa, enfrentando a reprovação dos pais – “Casamento é pra vida inteira!” – e encontrara apoio num grupo de mulheres. Falava de sororidade, de feminismo.

Rute achara tudo bobagem. “Coisa de mulher sem o que fazer”, pensara. Mas via a mudança em Maria, uma força que brotava dela. Rute sempre se calara, ficara na sua.

José não quis deitar na mesma cama. “Durmo no sofá”, anunciou, a voz carregada de acusação. “Coisas assim não acontecem com mulher séria”, resmungou, indo embora. A sentença pairou no ar.

Rute acordou antes do sol. Uma coragem nova, desconhecida, pulsava em suas veias. Encontrou José na cozinha, evitando seu olhar. Parou diante dele.

“José”, disse, a voz clara e estável, surpreendendo-a. “Eu sei quem eu sou. Sei o que faço e o que não faço. Você casou com a mesma mulher que está aqui na sua frente. A mulher que não fez nada para aquele homem, a não ser dar bom dia ao entrar no vagão. Não estou mais te reconhecendo, José. Você não é o homem com quem me casei, que fez os votos na igreja comigo. Acho que você não os entendeu. Então vou repetir: *Prometo amar-te e respeitar-te na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, na riqueza e na pobreza, por todos os dias da minha vida, até que a morte nos separe.* Respeito, José. Eu vou trabalhar. Enquanto isso, você decide onde vai dormir hoje à noite.”

A surpresa estampou no rosto de José. Ele engoliu seco, desviou, mais uma vez, os olhos, batendo as mãos inquietas sobre a mesa. Rute virou-se e saiu. Quem era aquela mulher? Gostou de não saber, ainda. Gostou mais ainda do silêncio atônito que deixou para trás.

O caso estava no jornal da TV. Ao chegar no trabalho, o ar mudara. Maria veio correndo, envolveu-a num abraço forte, quente. “Estou contigo, Rute. Pode contar comigo.” Outras colegas se aproximaram, abraçaram-na, murmuraram palavras de apoio. Algumas ficaram distantes, nos cantos, como ela mesma ficara tantas vezes. “Devem estar pensando que mereci”, passou-lhe pela cabeça, mas a dor era menor agora.

Na sua mesa, uma única rosa num copo de água. Um bilhete do chefe: “Bom dia, Rute. Já sabemos. Se quiser conversar, minha porta está aberta. Mas não precisa se explicar. Fique bem.”

O abatimento ainda a tocava, mas agora era contrabalançado por uma onda de alívio. Encontrara no trabalho o apoio que José lhe negara. O abraço que precisava, o afago para a alma machucada.

Na hora do almoço, procurou Maria. “Maria…”, começou, a voz um pouco hesitante, mas os olhos firmes. “Quando tiver a próxima reunião do seu grupo… Eu gostaria de ir. Se puder. E… por enquanto, você pode me explicar o que é esse feminismo que você tanto fala?”

Maria sorriu. Um sorriso triste, compreensivo, cheio de uma luz nova. Apertou a mão de Rute. “Claro que sim, amiga. Claro que sim.”

Dentro de Rute, algo novo nascia, frágil e forte ao mesmo tempo. Não sabia ainda quem era essa mulher que emergia das cinzas. Reconhecia-se cheia de preconceitos que agora lhe pareciam grotescos. O rapaz que julgara pelo visual fora seu anjo da guarda. A colega que desdenhara era seu porto seguro. O chefe que temera era um aliado. E o marido que idolatrara… José ainda era uma interrogação dolorosa.

Seus preceitos mais arraigados ruíam. Junto com eles, caíam os muros altos dos seus preconceitos. Rute começava a desvendar um mundo e uma vida até então desconhecidos. O trabalho seria longo: varrer as velhas ruínas e, tijolo a tijolo, palavra a palavra, reconstruir-se.

Conto de Adrianafetter

2017 o ano que continuou em 2018

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Gente do céu, pensem num ano difícil!

No trabalho o ano começou conturbado, joga a gente pra lá, volta pra cá, fica-se no aguardo de melhorias e nada…

Em abril começa um febrão, nos primeiros 10 dias, diagnóstico, virose, o médico mesmo diz, quando não se sabe o que é dizemos ser virose, isso na segunda.

Na madrugada de quarta para a quinta-feira os dois ouvidos estouram, vai para o pronto-socorro, começa o antibiótico. Oito dias depois um formigamento estranho na boca, parecia que a xícara não encaixava direito, vai no PS de novo, no atendimento pedi um otorrino, caí em excelentes mãos.

O médico fala, é grave vou te internar! Oi… O que?! Já ouviram falar em otomastoidite com paralisia facial (essa eu conhecia), nem eu … Me mandou imediatamente para o PS começar a medicação enquanto aguardava uma tomografia cerebral, que confirmou o diagnóstico, 10 dias de hospitalização, uma cirurgia para drenar a infecção e o rosto completamente torto.

Durante os dias de hospitalização meus diretores foram demitidos, eu sabia que também seria, segundo escalão imediato.

Saio do hospital descompensada, o médico já havia me avisado, vou te curar disso, mas, em compensação, teu corpo será todo desregulado, falou e disse, preciso que  especialistas te acompanhem! Açúcar alto, pressão desequilibrada, nervos da face paralisados. Segue tratamento em casa, muita fisioterapia, visita a neurologista, cardiologista, endocrinologista, fonoaudióloga, fisioterapeuta neurológico, acupunturista, tinha uma agenda de saúde plena.

Assim que os antibióticos e corticóides terminaram já em meados de maio sinto no ombro dores agudas que me impediam inclusive de dormir, vamos para o ortopedista?! Vamos!

Exames feitos rupturas de tendão e ligamentos, quase totais. Resultado,  o médico anuncia cirurgia em agosto e 2 meses de imobilização e a fisioterapia que ainda tem que completar.

Junho, finalmente férias e uma viagem planejada, desde dezembro do ano anterior, com minhas amigas, para Portugal e Espanha. Último dia no exterior chega a mensagem da minha exoneração naquela semana, já previsível. Mas cada dia da viagem compensou o que aconteceu antes e deu energias para o depois.

Julho um monte de anti inflamatório e remédios para dor para aguentar até a cirurgia em agosto.

Setembro imobilização e fisioterapia em casa.

Outubro o hospital Sarah me liga para fazer a cirurgia de vértebra deslocada, esqueci de falar, foi diagnosticada em janeiro, foi postergado devido ao tratamento de ombro e ainda estou analisando.

Tanta tensão e veio a consequência, uma convulsão, que agora está sob controle com mais medicação.

Novembro, vamos visitar minha mãe em Pelotas, tudo ótimo com passeios, já no avião vem a notícia, ela havia sido hospitalizada, bate volta Brasília/ Pelotas. No regresso, na saída do hospital, tendo em vista os cuidados necessários, levo minha mãe para uma casa geriátrica, acho que gastei minhas lágrimas nesse episódio.

No retorno a Brasília sigo direto para o hospital, infecção das vias aéreas superiores, bronquite e sinusite, mais medicação.

Passou dezembro e eu estou aqui pensando em tudo de bom que tive em 2017: meu marido o tempo todo ao meu lado, me dando o amor e o apoio que necessitei; filhos (aqui nestas palavras estão nora e genro) se revezando em cuidados comigo e me fazendo sentir o quanto sou amada; minha neta mais velha me acompanhando no hospital e se fazendo presente sempre que precisei; minhas amigas se alternando para me cuidar e me divertir;  meus pequenos netos enviando mensagens de apoio no WhatsApp, pedindo para a vovó melhorar logo; uma viagem incrível para recuperar a alma e dar as forças para prosseguir; amigos de longa data e longa distância enviando mensagens de força e energia; parentes próximos segurando a onda quando eu não conseguia; minha mãe me abraçando no dia em que me despedi dela e me dizendo que me ama! Criei o blog e a Página Pós50 e o grupo de mulheres Conversando o Pré e o Pós50, pensem numa criatividade a mil!

Por mais que 2017 e 2018 também esteja sendo difícil, estamos quase em setembro e este ano também foi de médicos, exames e fisioterapia e novos diagnósticos, mas ainda consigo reconhecer o lado bom em tudo e só posso dizer – minha gente obrigada por todo o apoio!

Dou notícias…