Promessa



Às vezes volto a ser criança sem aviso. Um cheiro de terra molhada depois da chuva — tão raro em Brasília na seca  — e estou de volta ao quintal da infância. Vejo meus pés pequenos sobre a terra fofa, colhendo morangos vermelhos que manchavam os dedos de doce. Meu pai partia romãs, encontradas no mato, com as mãos, e nós comíamos de colher, semente por semente, como se cada uma contivesse um segredo.

Essa criança ainda vive em mim. Ela carrega não só a alegria dos sabores, mas também as dores, que eu pensava ter deixado para trás. Ao reconstruir minha trajetória até Brasília, entendi que não se trata de escolher entre preservar apenas o alegre ou apagar o triste — mas de abraçar a criança interior completa que fui, com suas romãs, seus morangos e suas feridas.

Cada curva no caminho para Brasília foi temperada por esses sabores antigos. A mesma mão que colhia pêssegos no pomar de casa, agora digita em teclados modernos — mas a amêndoa dentro do caroço ainda sabe a promessa.

Brasília não apagou meus sabores — apenas lhes deu novo palco. Aqui, no cerrado, minha criança interior finalmente compreende: a vida não é sobre apagar o passado, mas sobre enxertar memórias em novos troncos.

O poema

Que seus olhos vejam
o que o espelho ainda não capta:
o eterno que você já é.

Não precisa renascer — porque nunca deixou de arder.

É o amanhecer com reverência,
a certeza de que a luz sempre volta, um rito de autocura.

Você já é fogo, asas e renascimento em versos vivos.
O poema que nasce da sua própria força.
Leio com as mãos em prece.

Poesia de AdrianaFetter

Fome

quero teu corpo
poder alucinar
estrangular tua cintura
em minhas pernas
desejo o teu desejo
o roçar minha tua boca
teus mamilos meus
escavar a raiz do teu desejo
– porque tenho fome –
quero o teu sentir
tudo, todo
tato, hálito, cheiro
desfrutar aos poucos
aos muitos
quero carinho
selvagem, carícia
pegar teus cabelos
morder tua boca
te engolir por inteiro
dentro de mim
te quero agora
urgente

Poesia de AdrianaFetter

SuperAR

Quantas vezes precisamos respirar,

Inspirar longamente

Expirar até esgotar

Olhar ao redor baldio

Reentrar com ideia em si

Reaver o seu eu

Inspiração.

Espirar profundamente

Expelindo seus estranhamentos

Afastar todas as querelas

Transpiração.

Quantas respirações são necessárias

Até transmutarmos uma situação difícil?!

Superação.

Liberdade

livremente corpo afora

dei asas a sensibilidade

te pressiono no querer

receba meu toque em tua carne

hemisférios e meridianos

onde meus dedos brincam contigo

meus sentidos reagem ao teu prazer

que é compartilhado, retribuído

a sensualidade impregna a pele

os cheiros se misturam

na hora do gozar,

toda a liberdade do prazer

construindo nossas fantasias

corpos quentes, arrepiados

recebendo nossas impressões

o perceptível deleite

no gozo íntimo do possuir.

Poesia de AdrianaFetter

O Mito da Retidão

Nossas torções são anéis de crescimento

A beleza da rotação necessária

Transformação como dor que refunda.

E olha a própria deformação de cabeça erguida

Como a árvore que ainda

Ergue-se apesar do vento.

Ponto de equilíbrio móvel.

Nem centro, nem caos,

Verticalidade como ilusão

Um planeta que oscila e ainda gira. 

Revolução imperfeita (e por isso possível)

Aceitação do inevitável

O que nos sustenta o orgulho ferido?

Ou nos dobra na busca de horizonte?

Esses versos são vértebras de um segredo ancestral.

O grito contra quem julga dores alheias.

Sai do eixo e ecoa no cosmos. 

Eco Da Sua Falta



Voltei a escutar
o que dedilhou na escuridão:
cada nota, um fósforo aceso
no escuro do meu não-lugar.
Sinto a falta do seu tudo:
o prometido que virou brisa,
o entendido que desmanchou
no tear do tempo.
Admito:
acordo em seus versos
sem nunca ter dormido.
Sou vigia da sua vigília,
sombra do seu “jamais dormir”.
Na transgressão do encontro
(que não houve, mas houve),
bebo seu “merecido realizar”
como quem sorve o oceano
por uma fenda na areia.
Saudade?
Não a nomeio mais.
Deixo que ela me nomeie:
o nó que aperta o peito,
fruta verde do seu verso.
Espero como você espera:
o tempo que há de vir
vestido de alvorada fria.
E enquanto a noite dura,
abraço seu reconforto
como a asa quebrada
de um pássaro noturno.
Porque sei:
a falta que você canta
é o único abrigo
onde meu silêncio, enfim,
se reconhece casa.




Teia De Seda

Eu não escrevo: teço armadilhas de luz

onde nos perdemos (e nos achamos) voluntariamente.

Nosso segredo é de versos que mordem

Somos: 
rede e faca, 
queda e asa, 
veneno e antídoto. 

E nesse jogo, só perde 
quem não ousa cair de olhos abertos.

Reconheço em ti 
o mesmo vazio que dança em mim

Te enovelo, não para sufocar, 

Mas para sentir nosso duplo pulso
Sob a mesma seda.

E abraço o perigo

Te chamando de poesia.

Poesia de AdrianaFetter

O primeiro tapa

O primeiro tapa aconteceu enquanto ela dirigia, numa discussão sem importância, o marido não tinha mais argumentos, virou e bateu na sua mão.

Foi um susto, chegou por segundos a perder a direção do carro, mas retomou rapidamente. Não entendeu o que tinha acontecido, ficou sem palavras até chegar em casa, o rosto permanecia vermelho, como se tivesse levado uma bofetada. Restou um zumbido agudo no ouvido direito.

O casamento já vinha desgastado com frequentes discussões, ela tentava permanecer nele. Havia sido criada sabendo que casamento era para sempre.

Sua mãe repetira até morrer: “Mulher de verdade engole seco e sorri.” Não sabia mais o que fazer, agora aquele tapa.

Sentou no banco da cozinha, observando a mão direita: o lugar onde ele batera latejava; o anel de ouro apertava como cilada.

Lembrou-se de quando ele o colocara, 12 anos atrás. “Para sempre”, ele dissera. Agora, “para sempre” cheirava a medo.

Foi então que o corpo decidiu por ela.
Levantou-se, foi ao banheiro, e vomitou.
Não foi a raiva — foi o nojo retrospectivo de todos os desrespeitos que normalizara.

Quando ele veio para o quarto, tarde da noite, já cheirando a whisky, ela estava sentada na cama, com a mala aberta.

“Onde você pensa que vai?” ele riu, a voz grossa de álcool e soberba.
Ela não ergueu os olhos. Concentrou-se na textura áspera da alça da mala.

“Você me deixou com raiva no carro”, ele justificou, como se falasse de um cachorro que puxara a coleira. “Você me empurra pro limite.”

Foi quando ela viu: não era o primeiro tapa.
Era o último soco num caixão que ela própria cavara, dia após dia, ao dizer “ele muda”.

De pé agora, frente a frente com o rosto familiar, ela disse só:
“Tira suas coisas até amanhã.”

A frase saiu calma, clara, cortante como vidro.
Ele empalideceu. Tentou o velho truque: “Sem mim, você não é nada.”

Mas ela já corria o fecho da mala.
O estalo no carro partira algo irreparável dentro dela — o nó que a prendia.

Na manhã seguinte, ela ficou sentada à janela, silenciosamente equilibrada. Suspirou…

Sua mão direita ainda doía.
Mas pela primeira vez em anos,
o anel não apertava.