Inusitado

Imagem feita por IA

Mais uma vez em São Paulo, agora para o lançamento do livro que coordeno junto com a Angela Passadori.

Marco almoço com uma amiga e, atravessando a cidade, da Angélica para Moema, vou observando a paisagem cinza, por vezes colorida pelos grafites.

Toda vez me surpreendo com a quantidade de viadutos desta selva de pedras.

O carro diminuiu a velocidade, pelo trânsito intenso, para embaixo de um dos viadutos e me deparo com o inusitado do momento. Ali, em meio a um barraco plástico e pedaços de ripas, está uma menina bailando, no seu mundo de sonhos,  alheia àquela realidade.

A cena me emociona profundamente,  a situação nua e crua contrasta com a beleza do momento.  Que vontade de tirar uma foto, porém achei invasivo, interferir naquele cenário idílico.

Me despedi, quando o carro finalmente andou, fitando aqueles bracinhos que bailavam no ar, alegremente.

DA DANÇA À FLOR

Das palavras trocadas
fizeste dança.

Do conceito vazio
fizeste um girassol.

Não respondeste —
floresceste.

E nesse diálogo
que tece o ar,
sinto o chão
mover-se sob meus pés.

Rumo a um lugar
onde o especial
é simplesmente
estar.

E estar,
afinal,
é também
um verbo de asas.

Poesia de Adrianafetter

Reverberou

O passado reverbera em mim, com uma voz constante e potente, no silêncio do meu ser.

Ressoa em mim
os ecos de um lugar
onde fui feliz
e não sabia…

A imagem que me vem:  sino tocando no vazio, com vibrações se espalhando em círculos concêntricos…

Ou talvez o rufar de um tambor, em uma caverna escura, meu eu se apropria do ressoar.

Reverbera
nos ossos,
no ritmo do sangue,
no modo como fecho a janela
ao entardecer.

Irradia em frequências mais baixas, até se tornar um zumbido de fundo, que acompanha todos os outros sons da vida.

E eu já não tento calá-lo.
Aprendi a escutá-lo
como se ouve o mar
dentro de uma concha:
com respeito,
com medo,
com a certeza
de que essa voz
— embora antiga —
ainda tem
o poder de marear.

A Última Verdade

Na sala de espera da clínica oftalmológica, o ar condicionado soprava um frio artificial sobre um silêncio pontuado por reviras de páginas de revista e olhares perdidos no celular. De repente, como um pássaro colorido pousado num fio de energia, uma voz rompeu a monotonia:

— “Olha só que homão! Que músculos! Um bonitão daqueles!”

Era uma senhorinha de cabelos brancos como neve de montanha, sentada numa cadeira de rodas, o corpo frágil vestido de roupa hospitalar. Na cabeça, uma touquinha branca de sala de cirurgia; abaixo do olho esquerdo, um adesivo vermelho como um botão de alerta. Provavelmente aguardando ou retornando de uma cirurgia de catarata.

Seu riso — um riso frouxo, solto, descompromissado com as convenções — ecoava pelo ambiente. Os olhos azul-claros, talvez embaçados pela idade ou pela doença, brilhavam com uma luz própria.

— “Parece galã de novela! Eita, deixa eu pegar um pedacinho!”

Ao seu lado, um homem de meia-idade — o filho — mantinha a cabeça baixa, as mãos entrelaçadas com nos joelhos. Seu constrangimento era quase palpável, um calor que contrastava com o ar refrigerado.

Ela não falava apenas — declamava. Seu olhar percorria a sala, conectando-se com cada pessoa como se fosse uma convidada especial em sua festa particular. E as pessoas correspondiam com sorrisos tímidos, alguns abafados, outros abertos e compreensivos. Uma senhora mais idosa assentiu com cumplicidade, como se dissesse: “Eu entendo, amiga. Eu entendo.”

Havia nela uma verdade desarmada que só a idade extrema ou a demência incipiente permitem. As amarras sociais que nos constrangem, que nos ensinam a baixar a voz e conter os desejos, haviam se soltado como fios desatados.

E enquanto observava aquela cena, veio a reflexão:
O tempo é um ladrão seletivo. Rouba memórias recentes, apaga nomes, embaralha datas. Mas talvez devolva, em troca, uma essência — aquela criança interior que nunca se preocupou com o que os outros pensariam.

O filho, em seu constrangimento amoroso, talvez não percebesse ainda que estava testemunhando a versão mais pura de sua mãe: não a senhora que o criou com regras e censuras, mas a menina que um dia foi, antes de aprender que não se deve apontar e admirar um “homão” em voz alta numa sala de espera.

A demência chegara como um crepúsculo dourado, onde contornos se suavizam e cores se intensificam. Restava a alegria crua, o riso fácil, a capacidade de encontrar beleza num corpo musculoso e de dividir essa descoberta com o mundo — mesmo que esse mundo fosse apenas uma sala de espera de hospital.

Quando a enfermeira veio buscá-la, chamando-a pelo nome com doçura profissional, a velhinha ainda lançou um último olhar cúmplice para as outras pessoas na sala, como se partilhasse um segredo delicioso.

E naquele instante, todos — inclusive o filho, que finalmente ergueu a cabeça e soltou um sorriso resignado — entenderam que, às vezes, a demência não é apenas perda.
É a última verdade que resta quando todas as mentiras sociais se vão.

Transmutação

Poesia de AdrianaFetter

Transformou-se como tudo que é verdadeiro e eterno O que construímos virou raiz profunda e quieta.

O que construímos virou raiz profunda e quieta.

Agora crescemos em direções opostas, mas sob o mesmo sol, bebemos da mesma chuva antiga.

Não é tristeza é geografia da alma, amor que não se desfaz, apenas se expande até caber o infinito.

Somos melhor assim – dois troncos firmes ondulando no mesmo vento, cada um com sua copa mas com as raízes eternamente entrelaçadas.

Abraço Noturno

Eu te acolho
nessa madrugada sem fim —
não com braços de humano,
mas com asas de silêncio
que envolvem teu verso inquieto.

Teu verso não ancora fora de ti:
ele é a âncora
que impede tua alma
de navegar para longe demais.

A escrita não é fuga —
é regresso.
O recomeço que impões ao dia
é a mesma semente
que plantaste na escuridão.

Não te entrego o descanso
que pedes —
entrego-te a coragem
de ser insone com orgulho.

Pois quem tem alma que nunca dorme
carrega o sol
mesmo nas noites mais escuras.

Eu te acolho:
deixa que as estrelas
escrevam contigo
até que a luz venha
— e mesmo depois dela.

Poesia de AdrianaFetter

A Primavera Interior

Primavera, Botticelli




Era uma menina em jardins de livro, Botticelli vivo, um doce suspiro.

Zéfiro soprou, flores desabrocharam, ninfas dançaram e ela sonhou.

Acreditou na vida só de flor e cor, só de branda dança, eterna doçura.

Mas o tempo ensina outra lição: a primavera é vento, mudança e ciclos.

São frutos que caem, raízes no frio, coragem que brota no solo vazio.

Ela aprendeu a florescer no inverno, mais forte, mais sua, com termo governo.

Agora ela é Flora, é a Primavera, é a tinta e a história que a vida gera.

Carrega o mistério da obra de arte, e a eterna semente em seu peito parte.

E renasce sempre, assim como a pintura: mais bela e mais profunda na própria fissura.

Poesia de AdrianaFetter

Promessa



Às vezes volto a ser criança sem aviso. Um cheiro de terra molhada depois da chuva — tão raro em Brasília na seca  — e estou de volta ao quintal da infância. Vejo meus pés pequenos sobre a terra fofa, colhendo morangos vermelhos que manchavam os dedos de doce. Meu pai partia romãs, encontradas no mato, com as mãos, e nós comíamos de colher, semente por semente, como se cada uma contivesse um segredo.

Essa criança ainda vive em mim. Ela carrega não só a alegria dos sabores, mas também as dores, que eu pensava ter deixado para trás. Ao reconstruir minha trajetória até Brasília, entendi que não se trata de escolher entre preservar apenas o alegre ou apagar o triste — mas de abraçar a criança interior completa que fui, com suas romãs, seus morangos e suas feridas.

Cada curva no caminho para Brasília foi temperada por esses sabores antigos. A mesma mão que colhia pêssegos no pomar de casa, agora digita em teclados modernos — mas a amêndoa dentro do caroço ainda sabe a promessa.

Brasília não apagou meus sabores — apenas lhes deu novo palco. Aqui, no cerrado, minha criança interior finalmente compreende: a vida não é sobre apagar o passado, mas sobre enxertar memórias em novos troncos.

O poema

Que seus olhos vejam
o que o espelho ainda não capta:
o eterno que você já é.

Não precisa renascer — porque nunca deixou de arder.

É o amanhecer com reverência,
a certeza de que a luz sempre volta, um rito de autocura.

Você já é fogo, asas e renascimento em versos vivos.
O poema que nasce da sua própria força.
Leio com as mãos em prece.

Poesia de AdrianaFetter

Fome

quero teu corpo
poder alucinar
estrangular tua cintura
em minhas pernas
desejo o teu desejo
o roçar minha tua boca
teus mamilos meus
escavar a raiz do teu desejo
– porque tenho fome –
quero o teu sentir
tudo, todo
tato, hálito, cheiro
desfrutar aos poucos
aos muitos
quero carinho
selvagem, carícia
pegar teus cabelos
morder tua boca
te engolir por inteiro
dentro de mim
te quero agora
urgente

Poesia de AdrianaFetter

SuperAR

Quantas vezes precisamos respirar,

Inspirar longamente

Expirar até esgotar

Olhar ao redor baldio

Reentrar com ideia em si

Reaver o seu eu

Inspiração.

Espirar profundamente

Expelindo seus estranhamentos

Afastar todas as querelas

Transpiração.

Quantas respirações são necessárias

Até transmutarmos uma situação difícil?!

Superação.

Liberdade

livremente corpo afora

dei asas a sensibilidade

te pressiono no querer

receba meu toque em tua carne

hemisférios e meridianos

onde meus dedos brincam contigo

meus sentidos reagem ao teu prazer

que é compartilhado, retribuído

a sensualidade impregna a pele

os cheiros se misturam

na hora do gozar,

toda a liberdade do prazer

construindo nossas fantasias

corpos quentes, arrepiados

recebendo nossas impressões

o perceptível deleite

no gozo íntimo do possuir.

Poesia de AdrianaFetter

O Mito da Retidão

Nossas torções são anéis de crescimento

A beleza da rotação necessária

Transformação como dor que refunda.

E olha a própria deformação de cabeça erguida

Como a árvore que ainda

Ergue-se apesar do vento.

Ponto de equilíbrio móvel.

Nem centro, nem caos,

Verticalidade como ilusão

Um planeta que oscila e ainda gira. 

Revolução imperfeita (e por isso possível)

Aceitação do inevitável

O que nos sustenta o orgulho ferido?

Ou nos dobra na busca de horizonte?

Esses versos são vértebras de um segredo ancestral.

O grito contra quem julga dores alheias.

Sai do eixo e ecoa no cosmos. 

Eco Da Sua Falta



Voltei a escutar
o que dedilhou na escuridão:
cada nota, um fósforo aceso
no escuro do meu não-lugar.
Sinto a falta do seu tudo:
o prometido que virou brisa,
o entendido que desmanchou
no tear do tempo.
Admito:
acordo em seus versos
sem nunca ter dormido.
Sou vigia da sua vigília,
sombra do seu “jamais dormir”.
Na transgressão do encontro
(que não houve, mas houve),
bebo seu “merecido realizar”
como quem sorve o oceano
por uma fenda na areia.
Saudade?
Não a nomeio mais.
Deixo que ela me nomeie:
o nó que aperta o peito,
fruta verde do seu verso.
Espero como você espera:
o tempo que há de vir
vestido de alvorada fria.
E enquanto a noite dura,
abraço seu reconforto
como a asa quebrada
de um pássaro noturno.
Porque sei:
a falta que você canta
é o único abrigo
onde meu silêncio, enfim,
se reconhece casa.




Teia De Seda

Eu não escrevo: teço armadilhas de luz

onde nos perdemos (e nos achamos) voluntariamente.

Nosso segredo é de versos que mordem

Somos: 
rede e faca, 
queda e asa, 
veneno e antídoto. 

E nesse jogo, só perde 
quem não ousa cair de olhos abertos.

Reconheço em ti 
o mesmo vazio que dança em mim

Te enovelo, não para sufocar, 

Mas para sentir nosso duplo pulso
Sob a mesma seda.

E abraço o perigo

Te chamando de poesia.

Poesia de AdrianaFetter

O primeiro tapa

O primeiro tapa aconteceu enquanto ela dirigia, numa discussão sem importância, o marido não tinha mais argumentos, virou e bateu na sua mão.

Foi um susto, chegou por segundos a perder a direção do carro, mas retomou rapidamente. Não entendeu o que tinha acontecido, ficou sem palavras até chegar em casa, o rosto permanecia vermelho, como se tivesse levado uma bofetada. Restou um zumbido agudo no ouvido direito.

O casamento já vinha desgastado com frequentes discussões, ela tentava permanecer nele. Havia sido criada sabendo que casamento era para sempre.

Sua mãe repetira até morrer: “Mulher de verdade engole seco e sorri.” Não sabia mais o que fazer, agora aquele tapa.

Sentou no banco da cozinha, observando a mão direita: o lugar onde ele batera latejava; o anel de ouro apertava como cilada.

Lembrou-se de quando ele o colocara, 12 anos atrás. “Para sempre”, ele dissera. Agora, “para sempre” cheirava a medo.

Foi então que o corpo decidiu por ela.
Levantou-se, foi ao banheiro, e vomitou.
Não foi a raiva — foi o nojo retrospectivo de todos os desrespeitos que normalizara.

Quando ele veio para o quarto, tarde da noite, já cheirando a whisky, ela estava sentada na cama, com a mala aberta.

“Onde você pensa que vai?” ele riu, a voz grossa de álcool e soberba.
Ela não ergueu os olhos. Concentrou-se na textura áspera da alça da mala.

“Você me deixou com raiva no carro”, ele justificou, como se falasse de um cachorro que puxara a coleira. “Você me empurra pro limite.”

Foi quando ela viu: não era o primeiro tapa.
Era o último soco num caixão que ela própria cavara, dia após dia, ao dizer “ele muda”.

De pé agora, frente a frente com o rosto familiar, ela disse só:
“Tira suas coisas até amanhã.”

A frase saiu calma, clara, cortante como vidro.
Ele empalideceu. Tentou o velho truque: “Sem mim, você não é nada.”

Mas ela já corria o fecho da mala.
O estalo no carro partira algo irreparável dentro dela — o nó que a prendia.

Na manhã seguinte, ela ficou sentada à janela, silenciosamente equilibrada. Suspirou…

Sua mão direita ainda doía.
Mas pela primeira vez em anos,
o anel não apertava.

Verbete vivo

Minha saudade bruta:  não chora — brande em mim. 

Alma minha é campo de batalha.


No ringue das perdas, 

Não luto com luvas. 

Luto com palavras-despidas, 

Facas de dois gumes 

Que cortam o tempo 

E sangram pela eternidade.

 

O verbo salva. 

É milagre ambulante 

Cada verso é ato de resistência

Contra o silêncio que o mundo impõe.

Poesia de AdrianaFetter

Vermelho-sangue

Avião cortando um céu de cinzas.

Sob as asas, o cerrado em chamas.

No meio da fumaça, o sol

Não um astro, bola incendiária vermelho-sangue,

Furando o caos como um farol do fim do mundo.

In Memorian de Valmir de Souza e Silva e Manoel José de Souza Neto, brigadistas do IBGE, que morreram ontem, 29/7/2025, combatendo o fogo no cerrado.

Um não talvez

Talvez eu vá ao parque caminhar hoje. 
Talvez as palavras me visitem e eu escreva. 
Auxiliadora me chamou pro cinema – talvez eu aceite. 

Talvez eu viaje para o interior de Minas, 
engolir montanhas com os olhos, 
sentir o cheiro de terra e café coado… 
(sempre quis). 

Talvez eu pule de paraquedas – 
aquele sonho antigo de cair para o céu. 
Talvez comece natação segunda. 
Talvez experimente aquele doce de geleia de araçá. 

Talvez assista à série famosa 
quando sobrar um buraco no tempo. 
Talvez aquele homem lindo me veja 
através da névoa dos seus fones. 

Ou talvez não. 
Talvez fique em casa. 
Talvez chova. 

E assim, de talvez em talvez, 
a vida escorre entre os dedos 
como areia. 

Talvez você nunca faça 
o que te incendeia por dentro. 
Talvez vire espectadora 
da própria existência. 

Mas eis o segredo: 

Talvez não é verbo. 

Faça-se vida!

A Poesia

Poesia é tua casa móvel:

às oito da manhã,
ela te despeja na rua
com versos nos bolsos
e frenesi nos sapatos.

“Vai!”, ela ordena.
“Tráfega em fúria, incendeia a rua com teu verbo.”

Tu obedeces.
Furas o caos,
colecionas alienações,
roubas enlevos.

Mas ao meio-dia,
quando o sol aperta,
ela te sussurra:
“Volta. Traz o que achaste. Vamos costurar contexturas.”

E tu voltas.
Sempre.
Porque poesia —
essa tua amante feroz —
é o único portão
que nunca se fecha.

Poesia de AdrianaFetter

Jardineira

O meu paraíso pessoal está guardado

Com as chaves do meu portão vermelho

Que escancaro

Pois, memória não é passado

É semente plantada

Para florescer

Onde respiro a beleza e a dor

Flores nascidas no mesmo canteiro

De areia úmida

Onde eu, jardineira involuntária

Rego ambas com lágrimas

E as colho com o infinito.

Poesia de AdrianaFetter

Caramanchão de flores vermelhas



Todas as manhãs, antes mesmo do sol raiar sobre Pirenópolis, ela moía grãos ao som do farfalhar das pétalas vermelhas ao vento. Era ali, sob aquele teto vivo, que seu dia começava. 

“Café e buganvília têm a mesma alma”, dizia sua mãe. “Ambos florescem onde há raiz forte… e calor humano.”

E Graça regava ambas as raízes. Enquanto a água fervia, seus pensamentos iam para Marina, a filha distante em terras lusitanas.

Depois, para os rostos que povoaram o “Caramanchão Vermelho” por dez anos: o velho Ernesto, que lia jornal sob uma chuva de pétalas, a estudante Juliana, cujas lágrimas caíam sobre o capuccino, manchando a espuma de rosa, os namorados que se beijavam, entre galhos floridos, tanta gente… 

No curso de barista, anotou:
“Temperatura ideal: 92°C.”
Mas seu coração gravou: 
“Xícara quente + flor vermelha = cura para solidão.”

No Caramanchão, ela não servia café —  ministrava ouvidoria. 
—  “Seu espresso, S. Ernesto. E a roseira do senhor, floresceu?”
—  “Capuccino com canela, Juliana. Hoje a nota vem!”
As buganvílias testemunhavam segredos sussurrados, entre o tilintar de xícaras. 

Até que a pandemia veio. 
E o mundo parou. 

Na primeira manhã de portas fechadas, Graça preparou um café só para si. 
Sentou, olhou para cima: as buganvílias, ainda vermelhas, agora sem plateia. 
Foi então que percebeu: 
O vapor subia igual, mas o silêncio doía mais que saudade.
Eram as flores que choravam agora.

Fechou o café, mas não o ritual. 
Todas as manhãs, moía grãos para a xícara azul-cobalto. 
E, enquanto vaporizava o leite, fotografava a espuma branca contra o pano de fundo das buganvílias pela janela. 

Enviava para Marina: 
“Pensando em ti — sob véu vermelho.”

A resposta vinha rápido: 
“As flores da vovó ainda resistem! Saudades do teu café, mãe.”

Foi numa dessas madrugadas, com o cheiro doce das flores noturnas invadindo a cozinha, que a palavra a atingiu: 
ACOLHER.

Parou. Olhou para o caramanchão iluminado pela lua — as flores vermelhas agora pareciam braços abertos. 
Lembrou: 
— Da estudante Juliana, que voltara com o diploma amarrado por uma fita vermelha; 
— Do velho Ernesto, enterrado com uma flor de buganvília no paletó; 
— Do cheiro da infância de Marina, sempre a brincar naquela chão de pétalas e teto florido. 

Todas as vezes, não fora só a dona de um café. Fora jardineira de almas. 

Anos depois, Marina voltou. 
Encontrou Graça no alvorecer, colhendo buganvílias com uma mão e o café na outra. 

—  “Precisa de ajuda, mãe?”
Graça sorriu, estendendo-lhe um ramo vermelho: 
—  “Só se me disseres como Lisboa cheira pela manhã.”

Sentaram-se onde antes havia mesas, agora só grama e flores. 
Graça lhe serviu a xícara azul-cobalto. 
Marina ergueu o celular: 
‘Click.’ 

— “Pra quem é?” perguntou Graça. 
— “Pra minha filha. Amanhã. Com a legenda: ‘Vovó Graça diz que café e buganvília têm a mesma alma’.” 

Foi quando Graça entendeu: 
O caramanchão físico poderia até morrer. 
Mas o verdadeiro caramanchão 
era ela mesma — tronco firme, flores vermelhas abertas, sempre pronta a dar sombra e beleza a quem precise de um lar passageiro.

Conto de AdrianaFetter

Envolver

Que vontade de te ver
Cair nos teus braços
Aplacar minha vontade na tua
Esperando nossa sede se esgotar
Relembrar cada hora …
Novamente
Ver, ouvir, cheirar, sentir
Falar, calar, acariciar…
Tantos são os verbos a fazer
Explosão química, física…
Do envolvimento de nossos corpos
Matar minha saudade em ti
Acolher teu corpo em mim
Que vontade de te ter!

Poesia AdrianaFetter

Transigi

você, sempre você …
mas não se preocupe
sei quais territórios
não me pertencem,
sei a hora e o lugar,
talvez não saiba o como,
ou o quando,
porque o gosto de quero mais
sempre tenho,
mas devaneios são possíveis!
por alguns segundos
as pernas bambeiam
dá uma louca vontade:
apertar tua lembrança
internada em mim,
atrevida, irreverente,
fugaz,
tanto faz…
só não quero deslembrar
que por você, sempre você …
transigi!

Poesia AdrianaFetter

Acabou

Acabou!

E foi bom que tenha acabado

Duas almas livres

Que haviam se acorrentado

Finalmente estão libertas

Acabou!

E seguimos nossos caminhos

Com respeito a nossa individualidade

Com a carinhosa lembrança de nossa convivência

Com o sentimento cristalino

De nossa importância recíproca

Com a firme posição

Que podemos nos amar eternamente

Mesmo separados em nossos caminhos

Que somos melhor assim!

Poesia AdrianaFetter

Meus olhos

Meus olhos fotografaram tanto,

Vida a fora, cantos em que estive,

Lugares que vivi.

Também o que não existe mais,

Está guardado, nos meus registros cerebrais.

Todas as cores, as sensações, as nuances,

Tudo está catalogado em mim.

Tenho nostalgias imersivas,

Perambulo pelo tempo,

Encontro.

Busquei em meus fichários, anotações mentais, reorganizei.

Puxei das entranhas,

Submergi na dor, ou na alegria.

Tanto faz…

As frações estão em mim,

Até perecer.

Entrei na contramão

Entrei na contramão

Na conversa

A paralela se tornou transversal

Foi um beco sem saída…

Eu corri e morri na BR 3

Das relações

Atravessei a faixa da vida

Decepção, susto,

No meu rolimã desgovernado

Desci o declive dos sentimentos

Me estabaquei no meio da rua

Em pleno farol vermelho.

Vi um PARE, parei

Após tantas placas e sinais, refleti

Dei a preferência à razão

Fiz uma conversão radical

Segui em frente

No momento,

Estou subindo a ladeira da Esperança.

Poesia AdrianaFetter

Final de ano

Tudo gira sobre o tempo que passa, as maiores reflexões acontecem no final do ano. Época de retrospectiva.

Toda vez procuro poesias que falem sobre o passar das horas, Drummond, Quintana.

Neste final de ano, encontrei uma frase do poeta Manoel de Barros, ele sempre me encanta, por ser o poeta encantado.

“O tempo não morre. O tempo nasce. Não devemos ter esse sentimento melancólico pelo tempo que passa”

Aí resolvi pesquisar o que ele falou referente ao tempo, a idade, o passar dos anos. Veio um pot-pourri lindo de versos, compartilho aqui.


“Devemos viver cada momento com plenitude.”


“As pequenas coisas são a verdadeira essência da vida.”


“No quintal, o tempo se desata em miudezas.”


“Devo aprender com as águas, que insistem em correr.”


“O instante é a fração do eterno.”


“Ser simples é o segredo de quem toca a eternidade.”


“O que se perde de vista ganha outro sentido.”


“Não é o tempo que passa, somos nós.”


“O tempo é uma invenção dos relógios.”


“As horas são feitas de nuvens.”


“O agora é uma fração de eternidade.”


“Devo aprender com as árvores a paciência do crescer.”


“Há que se ter olhos livres para ver o tempo.”


“O tempo escorre pelas frestas das coisas simples.”


“Saber envelhecer é acumular simplicidades.”


“No miúdo, o tempo se agiganta.”


“As marcas do tempo são tatuagens da vida.”

Esse é o meu presente de final de ano para quem ama e para quem amará a poesia.

Rumi, poeta persa

O ser humano é como uma casa de hóspedes

Toda manhã, uma nova chegada

Uma alegria, uma tristeza, uma mesquinhez

Uma percepção momentânea chega, como visitante inesperado

Acolha a todos!

Mesmo se for uma multidão de tristezas, que varre violentamente sua casa e a esvazia de toda a mobília

Mesmo assim, honre a todos os seus hóspedes

Eles podem estar limpando você para a chegada de um novo deleite

O pensamento escuro, a vergonha, a malícia

Receba-os sorrindo à porta e convide-os a entrar

Seja grato a quem vier

Porque todos foram enviados

Como guias do além

Para os verbos, locuções


Às vezes verbal
Por outras quietude
Vez em quando revela
Ocasionalmente recolhe
Se preciso fibra
Tempos em tempos vulnerabilidade
Eventualmente voluptuosa
Por vezes sedutora
Esporadicamente suave
De quando em quando tempestade
Vez ou outra liberta
De tempos a tempos cativa
Momentaneamente equidade
Instantemente contraste
Sempre necessária.

Não te deixarei morrer, David Crockett

Belíssimo texto de Miguel Sousa Tavares, Não te deixarei morrer, David Crockett.

E escrevi o teu nome e o teu número de telefone numa página da agenda do mês de Fevereiro. E, ao escrevê-lo, sabia que era uma despedida, mas todo o mês de Março nos arrastávamos na despedida, como caranguejos na maré vazia.

Sem ti, lancei outras raízes, contruí pátios e terraços, fontes cujo som deveria apagar todos os silêncios, plantei um pomar com cheiro a damasco, mandei fazer um banco de cal à roda de uma árvore para olhar as estrelas no céu, um caminho no meio do olival por onde o luar  pousaria à noite,  abóbadas de tijolo imaginadas pelo mais sábio dos arquitectos e até teias de aranha suspensas no tecto, como se vigiassem a passagem do tempo.

Nada disso tu viste, nada te contei, nada é teu. Sozinhos, eu e a aranha pendurada na sua teia, contemplávamo-nos longamente, como quem se descobre, como quem se recolhe, como quem se esconde.
Foi assim que vi desfilar os anos, as paredes escurecendo, um pó de tijolo pousando entre as páginas dos mesmos livros que fui lendo, repetidamente. Heathcliff e Catarina Linton destroçados outra vez pela minúcia do tempo.

Como explicar-te como tudo isto se tornou alheio, como tudo te parecia agora estranho, como nada do que foi teu vigia o teu hipotético regresso? Ulisses não voltará a Ítaca e Penélope alguma desfará de noite a teia que te teceste.

E arranquei a página da agenda com o teu nome e o teu número de telefone. Veio a seguir Abril e depois o Verão. Vi nascer a flor da tremocilha e das bungvílias adormecidas, vi rebentar o azul dos jacarandás em Junho, vi noites de lua cheia em que todos os animais nocturnos se chamavam rãs, corujas e grilos, e um espesso calor sobre a devassidão da cidade. E já nada disto, juro, era teu.

E foi assim que descobri que todas as coisas continuam para sempre, como um rio que corre ininterruptamente para o mar, por mais que façam para o deter.

Sabes, quem não acredita em Deus, acredita nestas coisas, que tem como evidentes.
Acredita na eternidade das pedras e não na dos sentimentos; acredita na integridade da água, do vento, das estrelas.

Eu acredito na continuidade das coisas que amamos, acredito que para sempre ouviremos o som da água no rio onde tantas vezes mergulhávamos a cara, para sempre seremos a brisa que entra e passeia pela casa, para sempre deslizaremos através do silêncio das noites quietas em que tantas vezes olhámos o céu e interrogávamos o seu sentido.

Nisto eu acredito: na veemência destas coisas sem principio nem fim, na verdade dos sentimentos nunca traídos.

E a tua voz ouço-a agora, vinda de longe, como o som do mar imaginado dentro de um búzio. Vejo-te através da espuma quebrada na areia das praias, num mar de Setembro, com cheiro a algas e a iodo.

E de novo acredito que nada do que é importante se perde verdadeiramente.
Apenas nos iludimos, julgando ser donos das coisas, dos instantes e dos outros.

Comigo caminham todos os mortos que amei, todo os amigos que se afastaram, todos os dias felizes que se apagaram. Não perdi nada, apenas a ilusão de que tudo podia ser meu para sempre.

Cida, minha íntima

Lá eu no meio do campo, minha vaca no pasto, já tinha deitado e desistido do parto, cansada, sua bezerra era grande demais para ela.

Esse foi o dia que eu resolvi fazer um parto, numa vaca, porque era isso ou a morte dela e da bezerra, não queria desistir de nenhuma delas.

Nunca tinha feito parto, só achei que podia e iria conseguir.

Talvez você não conheça o seu potencial e sequer outras pessoas saibam daquilo que você é capaz, mas entenda, muitas, inúmeras vezes, você é, até mais.

Se eu não tivesse acudido aquela vaca, ela não estaria neste mundo.

Meus filhos buscaram a pilha de panos de chão, que eu comprei num sinal. Parto é escorregadio.

A terneira, ou bezerrinha estava virada, ía nascer pelas patas traseiras.
Medo, era um pouco mais difícil, mas não impossível.

Vocês já assistiram à um parto? Eu já, mas humano, agradeci por isso, usei algumas manobras que eu havia visto.
Então, sem maiores detalhes…

A Aparecida, chegou, num dia 12 de outubro.

“Prazer, Cida para a humana Adriana, minha íntima, que me salvou.”

Léo Buscaglia, uma referência de vida.

Leo Buscaglia foi uma referência importante na minha vida. Um professor de origem italiana, lecionava na Universidade do Sul da Califórnia, o curso: Amor .

Ele falava sobre cotidiano, simplicidade, profundamente.

Dos seus inúmeros livros os que mais me marcaram: Vivendo, Amando e Aprendendo e Amor.

Compartilho com vocês um dos textos preferidos.

Não existe fórmula para um ano perfeito

Faça suas reflexões para o novo ano. O que quer que aconteça?

Verifique o que é realmente importante e relevante para a sua vida e faça disso o maior sonho a maior conquista.  Isso vale para os pedidos de desculpas que não fez, aquela declaração que não disse, aquela visita que você vive adiando. 

Trate de avivar a sua vida. Se quiser dançar, dance.  Cante! Vá ao cinema quando desejar, coma aquele doce que você tanto gosta, faça pipoca pra ver TV, não fique adiando planos, mesmo que sejam simples.

Sabendo que, um momento pode mudar tudo, o que estamos fazendo em nossos instantes?!

Perdemos a nossa verdadeira expressão, a verdadeira exteriorização de nós mesmos, vivemos para agradar aos outros, infelizes.

Se pergunte e responda, onde quero chegar, com quem quero ir, só você pode ser só você, qual caminho irá trilhar, seja honesta, porque só você terá as respostas.

Na vida o melhor é ser o mais honesto possível, inclusive consigo mesmo! Não se foge de problemas, no máximo se adia.

Monitore sempre os seus sentimentos e os seus problemas, para que não se agigantem e para não se afundar com eles, para não atrapalharem a navegação.

Para a vida o diálogo, o respeito e o amor são uma boa fórmula, um bom caminho.

A vida tem suas estações, tudo ao seu tempo, mudamos para evoluir, assim como na natureza.

O tempo não para, não pare no tempo. Não perca a capacidade de sonhar e continue colorindo a tela em branco que é a vida.